22/10/2024
A Presunção de Laboralidade em Trabalho Suportado por Plataformas Digitais - Reflexão à Luz da Lei n.º 13/2023, de 3 de Abril.
1. Introdução
O advento das plataformas digitais tem desafiado o ordenamento jurídico, particularmente no que respeita à relação laboral entre trabalhadores e empresas de plataformas digitais.
A Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, introduzida no Código do Trabalho, procura dar resposta a este fenómeno, especialmente com a criação de um regime de presunção de laboralidade, regulando as condições em que o vínculo entre as partes pode ser considerado como uma relação de trabalho subordinado.
Este artigo visa analisar a presunção de laboralidade no contexto das plataformas digitais, as suas implicações legais e os desafios que a nova legislação enfrenta ao tentar enquadrar uma realidade laboral em constante evolução.
2. O Regime de Presunção de Laboralidade: Fundamentos Jurídicos
O contrato de trabalho é definido no Código do Trabalho (artigo 11.º) como aquele em que o trabalhador se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra pessoa, sob a autoridade e direção desta. A subordinação jurídica, entendida como a sujeição do trabalhador às ordens e instruções do empregador, é o traço essencial que distingue o trabalho dependente do trabalho autónomo.
Com o crescimento da economia digital e o surgimento de plataformas como Uber, Glovo e Bolt, surgiram novas formas de prestação de serviços, muitas vezes disfarçadas de trabalho autónomo, onde os prestadores de serviços, geralmente designados como "parceiros" ou "colaboradores", são formalmente enquadrados como prestadores independentes.
Contudo, na prática, estes trabalhadores acabam por estar inseridos em estruturas produtivas que exibem características de subordinação.
A Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, veio aditar o artigo 12.º-A ao Código do Trabalho, estabelecendo uma presunção de laboralidade quando determinadas condições são verificadas. Esta presunção aplica-se às relações laborais estabelecidas no âmbito de plataformas digitais, permitindo que, em caso de litígio, a relação seja tratada como um contrato de trabalho, salvo prova em contrário.
3. A Subordinação Jurídica no Contexto das Plataformas Digitais
O principal desafio que se coloca no trabalho suportado por plataformas digitais é a dificuldade em identificar os elementos tradicionais de subordinação jurídica. Nas relações laborais tradicionais, a subordinação manifesta-se pela imposição de horários de trabalho, local de prestação de trabalho, e instruções diretas sobre como a atividade deve ser realizada.
No contexto das plataformas digitais, muitos desses elementos são desafiados. O prestador de serviços tem, em teoria, a liberdade para escolher quando e onde trabalha, ou até mesmo recusar tarefas. Contudo, a Lei n.º 13/2023 reconhece que essa liberdade é frequentemente ilusória, pois o trabalhador está, na verdade, condicionado pelas regras e algoritmos que regulam o funcionamento da plataforma.
A nova presunção de laboralidade surge quando, por exemplo, a plataforma fixa a retribuição do trabalhador ou estabelece limites mínimos e máximos para essa retribuição, quando o trabalhador se encontra sujeito a sanções ou avaliações da plataforma, ou ainda quando o trabalhador utiliza equipamento pertencente ou explorado pela plataforma.
4. Indicadores de Laboralidade em Plataformas Digitais
O artigo 12.º-A do Código do Trabalho enumera vários indícios que, quando presentes em simultâneo, geram a presunção de que a relação entre o trabalhador e a plataforma digital é de natureza laboral. Os indicadores incluem, entre outros:
• Fixação da retribuição: A plataforma fixa a remuneração ou os seus limites máximos e mínimos, ainda que o trabalhador tenha a faculdade de recusar o serviço. O poder da plataforma em determinar os critérios de pagamento é um sinal claro de controlo e subordinação.
• Exercício do poder de direção: A plataforma estabelece regras sobre a forma como a atividade é prestada, nomeadamente em relação à conduta do prestador perante os utilizadores ou à organização do serviço.
• Exclusividade: O trabalhador pode estar limitado no seu poder de prestar serviços a outros clientes ou de organizar livremente o seu trabalho. Embora a legislação não exija que o trabalhador esteja necessariamente vinculado apenas a uma plataforma, o controlo que a plataforma exerce sobre o volume e a aceitação de serviços é revelador.
• Instrumentos de trabalho: Embora muitas vezes os trabalhadores utilizem o seu próprio veículo ou telemóvel, a infraestrutura essencial (por exemplo, a aplicação que gere o fluxo de trabalho) pertence à plataforma. Tal realidade indica uma dependência operacional e uma subordinação na organização do trabalho.
5. O Impacto da Lei n.º 13/2023: Proteção dos Trabalhadores de Plataforma.
A Lei n.º 13/2023 introduz um avanço significativo na proteção dos direitos dos trabalhadores de plataformas digitais, ao reconhecer que, em muitas situações, as plataformas não são meros intermediários, mas sim empresas que organizam e controlam o trabalho prestado.
A presunção de laboralidade visa corrigir um desequilíbrio de poder que, frequentemente, coloca os trabalhadores numa situação de vulnerabilidade jurídica.
Além da segurança social, os trabalhadores que beneficiam da presunção de laboralidade passam a estar cobertos por direitos fundamentais, como o direito a férias, limites à duração do trabalho, subsídio de alimentação e proteção no despedimento. Estas proteções são particularmente importantes, dado que os trabalhadores de plataformas digitais frequentemente enfrentam condições precárias, com rendimentos incertos e uma ausência de segurança no emprego.
6. O Ônus da Prova: Inversão do Paradigma
Ao estabelecer a presunção de laboralidade, a Lei n.º 13/2023 inverte o ônus da prova. Assim, cabe às plataformas digitais provar que a relação com os prestadores de serviço é efetivamente autónoma e não subordinada. Esta inversão é um dos mecanismos mais eficazes na proteção dos trabalhadores, uma vez que, na prática, seria extremamente difícil para estes últimos provarem a existência de uma relação laboral subordinada, dadas as características da prestação do serviço.
7. Desafios e Perspectivas Futuras
Apesar dos avanços trazidos pela nova lei, existem ainda vários desafios pela frente. Um dos principais desafios será o de provar que a subordinação jurídica está presente de facto, uma vez que as plataformas poderão ajustar os seus contratos e práticas para evitar o enquadramento como trabalho dependente.
Além disso, à medida que a tecnologia evolui, novas formas de organização do trabalho digital continuarão a emergir, exigindo uma adaptação contínua das normas legais. A revolução digital está longe de terminar, e o direito terá que evoluir de forma flexível para garantir a proteção dos trabalhadores, sem sufocar a inovação.
8. Conclusão
A Lei n.º 13/2023 representa um passo importante no reconhecimento dos direitos dos trabalhadores das plataformas digitais, colocando o foco na realidade da prestação de serviços, independentemente das etiquetas contratuais. A presunção de laboralidade introduzida pela lei procura equilibrar as relações entre trabalhadores e plataformas, garantindo que aqueles que, na prática, prestam trabalho subordinado, beneficiem da proteção jurídica adequada.
Este é um tema em evolução, que exigirá uma constante monitorização e ajustes no quadro legal para assegurar que os trabalhadores de plataformas digitais não fiquem à margem da proteção laboral que a sociedade contemporânea exige.
Publicado : Manuel Pereira